quarta-feira, 4 de maio de 2011

Bagunte Medieval

O conhecimento de Bagunte medieval fornece um enquadramento, mesmo que tardio, para melhor conhecimento da Cividade. Na freguesia houve antas e outeiros, houve vilas rústicas, algumas certamente de origem romana, como Vila Verde; já se encontraram ruínas romanas também em Vilar. Bagunte medieval aparece como uma terra muito povoada e de grande potencial agrícola, onde têm interesses o Rei, nobres e mosteiros.
Para este efeito, a freguesia não se pode dissociar do Outeiro Maior, que fica mesmo ao fundo do monte onde se desenvolveu aquele povoado antigo; nesta freguesia se manteve ao longo dos séculos a única casa nobre de raiz medieval das redondezas.

No sopé do monte da Cividade de Bagunte

(“Subtus mons civitas Bogunti”)

Por causa do monte da Cividade, o nome de Bagunte ocorre em muitos documentos medievais como ponto de referenciador, mesmo que esses documentos digam não raro respeito a freguesias vizinhas. Escrevia-se que tal propriedade ficava no sopé da Cividade de Bagunte: “subtus mons civitas Bogonti” (1038), “ad radeice civitas Bogonti” (1028)[1].
Mas houve uma segunda razão que valorizou a freguesia nesses tempos recuados, a estrada (que era caminho de Santiago) que vinha do Porto, por Moreira da Maia, Vairão, Ponte d’Ave e seguia depois para Rates.
Parece contudo que não foi a Cividade que deu o nome à freguesia: foi a vila de Bagunte que lho deu.
Qualquer que tenha sido o étimo desta palavra, ela terá vindo para nome da vila como antropónimo, só depois passando a nome da freguesia.
A paróquia de Bagunte já vem assinalada no Censual do Bispo D. Pedro, de cerca de 1080.

Qual a origem do nome da freguesia?

Em Lugo, na Galiza, há um concelho chamado Begonte. O Begonte de lá e o Bogonte de cá originam-se na mesma palavra. Veja-se o que diz a Wikipédia a propósito.
Abogunte, aliás, Abogunto, homem de luta. É sem dúvida esse o étimo de Bagunte. As outras possibilidades não me parecem de aceitar.

Como se chamava a Cividade?


Cunha e Freitas, num artigo intitulado “Memórias para a história das freguesias de S. Simão da Junqueira e de Santo André de Parada”[2], transcreve um trecho das memórias paroquiais de 1758 que nos fala da Cividade em termos com certeza muito próximos dos que poderiam ter sido utilizados na Idade Média por qualquer pároco a quem pedissem a descrição das ruínas:
“No monte da Cividade (…) houve antigamente uma cidade chamada Brachal ou Brachelense ou, por outro nome, Azeveoso[3] e, pela parte do norte que lhe ficava para a sua defesa um castelo, que se chamava Argifonso, e hoje, com pouca corrupção, se chama Castelo de Gifonso, e desta cidade e castelo só aparecem hoje alguns vestígios”.
Neste contexto, castelo não tem necessariamente o sentido que lhe damos hoje, mas a verdade é que havia ali algo como muralhas que impressionaram em tempos bem recuados[4]. Então os vestígios quer da Cividade quer do “castelo” de Argifonso seriam bem mais nítidos, já que, no correr dos tempos, a sua pedra foi sendo utilizada para novas construções.
Vejam-se alguns documentos medievais que mencionam Argifonso e Azevoso:
Em 1172, Bermudo Peres e sua esposa, Maria Oariz, venderam a Paio Pais, prior do mosteiro de S. Simão, uma herdade na vila rústica de Argifonso, que ficava no sopé de Alzevoso (há no geral formas um pouco diversas para estes nomes), próximo ao rio Este (“in villa que vocitant Argifonsi subtus mons Alzevoso discurrente rivulo Aliste”).
Em 1185, Paio Fafes vendeu a Soeiro Fafes uma herdade na vila de Corvos, no sopé do monte da Cividade de Azevoso, território bracarense, entre o Ave e o Este (“villa que vocitant Corvus subtus mons civitas Azevoso teritorio bracarense discurrente ribulo inter Ave et Aliste”).
Se o documento anterior mencionava uma vila a norte do monte da Cividade, agora menciona-se Corvos, a sul, mas também bem próximo dela, e a Cividade é simplesmente Azevoso.
Num documento do ano 985, relativo à “vila” de Figueiró, lê-se que ela ficava “suptus castro argefonsi discurrentis ribulo aue” (no sopé do castro de Argifonso, próximo do rio Ave).
Não encontrámos nenhum documento destes tempos antigos que mencionasse Brachal ou Brachelense.
Há um documento de Afonso Henriques, ainda príncipe, que citamos à frente, datado de 1136, que também refere a Cividade de Azevoso.

Porque se associaria a cividade ao nome da vila de Bagunte, bastante distante, se havia outras, como Corvos e Gacim ali muito mais perto?[5]
Tal teve a ver sem dúvida com direitos de propriedade; os mesmos direitos que levaram a prolongar Bagunte até à Senhora das Neves, passando por Corvos.
Deve-se ter em conta que da vila de Gacim, nos limites do Outeiro Maior com Bagunte, se conservam talvez tantos documentos como das outras vilas da vizinhança todas juntas; e também há número significativo de documentos sobre a vila de Corvos.
O que parece claro é que Bagunte não é o nome que o povoado teve quando era habitado.

À Ermida da Senhora das Neves, segundo o Tombo da Comenda de Balasar, chamou-se noutros tempos Ermida do Vale de Flores, porque ficava ali no Vale de Fores. Alguma coisa este tão poético nome teria a ver com a Cividade.
Também a Casa de Cavaleiros teve, sem dúvida, na sua origem a ver com a mesma Cividade. Aliás, nela terão ocorrido achados romanos.
A Cividade não testemunha a memória mais antiga de actividade humana em Bagunte; essa cabe ao Outeiro de Anta e a Vilar de Anta. Anta, por enviar para uns dois milénio antes de Cristo, e outeiro por ser ele com certeza também anterior à Cividade. E está ali ao lado o Outeiro Maior[6].

A Cividade de Bagunte na literatura


Agustina Bessa-Luís escreveu o seu O Soldado Romano por inspiração da Cividade e porque na adolescência viveu algum tempo em Cavaleiros. A acção decorre na actualidade, mas há uma personagem antiga evocada, o soldado romano. Veja-se esta breve passagem do conto:
 “Ao pé da aldeia de Corvos erguia-se o monte da Cividade. Tinha sido um quartel dos romanos e havia lá ruínas que eram a prova disso. Via-se o mar desde ali e o silêncio, mesmo com dia claro, causava impressão. Nós levávamos batatas para assar e não ficavam bem assadas, mas sabiam-nos bem assim. Com muito sal e meias cruas.”
Também é mencionada a Senhora das Neves.
Acrescente-se que este conto é ilustrado (por um vila-condense) e que as ilustrações relativas à Cividade correspondem bastante de perto à realidade do lugar.
Onde nada disto aparece é no romance da mesma autora Antes do Degelo, apesar de nele se referir Cavaleiros.
Uma Deusa na Bruma


[1] Há modos mais curiosos de escrever isto; por exemplo: “subtus Zividad Bogonti” (1036), “subtus cividá bogonti” (1050), “subtus Castro Aregefonsi et civitas Bocunti” (1102).
Os documentos medievais que vão ser citados ora vem no livro de Sérgio Lira (ver bibliografia), nos Portugaliae Monumenta Historica ora ainda noutras fontes.
[2] Boletim Cultural de Vila do Conde, Nova Série, nº 13, pág. 30. Esta citação encontra-se também, naturalmente, no livro de Bernardino Areal da Silva (Ver bibliografia).
[3] Um documento do início do século XVI fala duma fonte de Zeboso (Eugénio Andrea da Cunha e Freitas, “Memórias para a História das Freguesias de S. Simão da Junqueira e de Santo André de Parada”, in Boletim Cultural de Vila do Conde, nova série, nº 13, pág. 26), nome que sem dúvida corresponde a Azevoso.
[4] O Castro de Argifonso também já foi estudado, como consta dum trabalho publicado sobre ele por F. Russel Cortez.
[5] Com certeza no contexto da nova divisão administrativa que os governos liberais impuseram ao país, o arcipreste vila-condense Domingos da Soledade Silos, em 1845, propôs que Corvos fosse integrado no Outeiro Maior. Tal nunca aconteceu nem virá a acontecer, mas dá razão à questão estamos a abordar.
[6] Ainda nos não foi possível descortinar um sentido para o comparativo maior, que ocorre no nome desta freguesia, mas ele ocorre em nomes como Montemor, Rio Maior, Campo Maior, etc. É uma palavra com um longo rasto na história da cultura.

Imagens, de cima para baixo:

Croquis-mapa da freguesia de Bagunte.
Pormenor da Cividade.
Capa d'O Soldado Romano, de Agustina Bessa-Luís.

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