No século XIII, os Cunhas estavam ligados à corte e possuíam uma posição social relevante a nível do país. O que nem sempre lhes trouxe proveito. Esta família, nos seus elementos mais recuados (isto é, mais antigos e conhecidos) tem raízes que a prendem às vizinhanças de Bagunte. Segundo Sérgio Lira, o seu mais antigo antepassado conhecido seria irmão do antepassado mais conhecido dos Cavaleiros do Outeiro Maior, D. Fáfia Guterres[1].
Um célebre elemento desta família dos Cunhas foi Lourenço da Cunha. Entre os feitos dignos de menção que dele se relatam, conta-se a sua participação no saque a Triana (a parte de Sevilha que fica na margem direita do Guadalquivir), em 1176, ao lado de D. Sancho I, donde terá trazido significativo pecúlio. Seria então muito jovem[2].
As Inquirições de 1258 mencionam em Bagunte dois filhos seus (talvez então já falecidos), que haviam sido activos no latrocínio da propriedade real: João Lourenço da Cunha e Martim Lourenço da Cunha. Em Parada, Martim Lourenço da Cunha chegou a fazer “em Lamisinhos uma honra nova e pôs-lhe o nome de Cunha Nova”. Desta Cunha Nova, sem dúvida a Quinta de Cunha, chegou até nós um documento de 1241. Era Cunha Nova por oposição à velha, sua homónima, numa freguesia do actual concelho de Braga.
As violências de João Lourenço da Cunha
Vejamos agora a relação das violências que as Inquirições de 1258 assacam a João Lourenço da Cunha.
Era solteiro este Cunha e acabará por deixar a fortuna própria a um irmão, de nome Vasco. João Lourenço da Cunha surge associado à depredação da propriedade régia em Figueiró de Cima, na devesa de Onega, em Pereira, na Corneliana (Correlhã?) e ainda no narseiro de Penela. Qualquer destes actos deveria trazer dores de cabeça aos homens de Vilar, até porque as coisas às vezes iam bastante longe.
Em Figueiró de Cima, “João Lourenço da Cunha fez uma honra nova e uma vinha e apropriou-se de campos e herdades não suas e deitou fora deles os homens de El-Rei e alguns há que não ousam entrar aí por medo dele e pela pousada que fez João Lourenço, pela qual se destrói este lugar e o reguengo circunjacente”.
A devesa de Onega, que era do Rei, “pela qual e da qual o reguengo de El-Rei se povoava, o mesmo João Lourenço da Cunha destruiu-a e apoderou-se dela”.
Na Vila de Figueiró, havia «uma grande peça de reguengo de El-Rei (…) e Lourenço da Cunha tem-na pela força. Embora o mordomo da terra e o alcaide atestem o pão, nada dá pela defesa deles, mas penhora por si no reguengo de El-Rei e por toda a terra».
Na Corneliana, a violência deste rico-homem assume aspectos mais cruéis, mais convincentes:
“No lugar de Cirquido[3], há uma leira reguenga de El-Rei; já passaram bem catorze anos que não é trabalhada por proibição e medo do mesmo João Lourenço; e os homens do Rei que quiseram trabalhar, prendeu-os pelas suas gargantas”.
Insaciável, este Cunha não respeita ninguém:
“Em tempo deste Rei, espoliou um homem de El-Rei, de nome Paio Pais, da sua herdade que havia comprado a um irmão da sua mulher que mora em Sintra. E além disto, fez muitas outras maldades em seu proveito”.
Um ou outro dos lugares aqui mencionados será já desconhecido em Bagunte na actualidade; a maior parte porém é bem identificável. A palavra narseiro, ou nasseiro, vem de nassa, e remete para uma forma de apanhar peixe no rio.
Martim Lourenço da Cunha actuou entre Carcavelos e Figueiró, em Sob-o-Monte Ceano, do outro lado do rio, e no narseiro da Pedra Alva.
As suas prepotências têm menor alcance que as do irmão e são também em menor quantidade. Aliás, faz sentido, se soubermos que ele apoiara o Conde de Bolonha na luta contra Sancho II. Assim, “na saída de Carcavelos e Figueiró”, fez um casal de novo, “onde não devia fazer, pois são homens de El-Rei, e por isso estão as duas vilas cegadas, que não têm saída nem pastagens”.
D. Sameiro e a Ponte d’Ave
Se a história de Bagunte e suas redondezas se não pode fazer sem referência ao Mosteiro da Junqueira, também se não pode fazer sem referência a uma casa tão nobre e antiga como foi a de Cavaleiros, no Outeiro Maior, e mesmo à Quinta de Cunha.
É em documentos dos mais antigos senhores conhecidos de Cavaleiros que surgem as primeiras referências à ponte de D. Sameiro[4].
Num documento de 1167, os filhos de Fafia Guterres dividem entre si a herança paterna. Esses filhos são Soeiro Fafes, Mor Fafes, Martinho Fafes, Pedro Fafes e Nuno Fafes. Quase um século mais tarde, nas Inquirições de 1258, diz-se de “S. Martinho do Outeiro” que “esta paróquia é Honra dos Cavaleiros desde antigamente, da família de D. Fafia Guterres”. Isto é, tratava-se dos mais remotos senhores de Cavaleiros de que há memória.
Em 1210, Pedro Fafes faz testamento e para a ponte de D. Sameiro e de D. Goncinha deixa um maravedi[5]. Mas já antes, talvez em 1205 (não é possível precisar mais a data), o seu irmão mais velho, Soeiro Fafes, também em testamento, dissera de certa propriedade que as suas rendas deviam ir para a ponte, até à conclusão dos arcos: tratar-se-á com certeza da mesma ponte de D. Sameiro.
Nas Inquirições de 1220 escreveu-se sobre esta ponte:
"Havia aí outros campos reguengos de que fizeram dois casais, e dizem que El-Rei Afonso os deu à ponte de D. Sameiro e depois o Rei D. Sancho concedeu-lhos. E o abade sobredito disse que este Rei D. Afonso concedeu os ditos casais à mesma ponte e disso fez carta”.
A ponte também é mencionada em 1258: "Acrescentaram também que aquela ermida que se chama da Santa Cruz, que está na ponte de Sameiro, é da Igreja de Santa Maria de Bagunte, de que tem grande força, e El-Rei tem aí dois casais que foram dados para fazer a ponte e, feita esta, não os possui El-Rei, do que recebe grande prejuízo. E possui-os agora certo clérigo, de nome abade de S. Salvador de Macieira”.
Conclui-se destas citações que houve várias pessoas que se empenharam na construção da ponte: D. Sameiro, o rei D. Afonso Henriques (que dizem que até teve interesses amorosos nas redondezas...), ainda D. Sancho I, os Cavaleiros e certamente muita outra gente. Que a ponte terá ficado acabada no reinado do amante da odiosa Ribeirinha. Que a contribuição de D. Sameiro deve ter sido significativa, para a ela ficar ligado o seu nome. Que a colaboração régia terá sido com certeza maior que a disponibilização temporária do rendimentos dos dois casais mencionados em favor da obra. Sobre esses casais, havia ainda ao tempo das Inquirições uma questão pendente, que prejudicava o Rei.
A ponte de D. Sameiro, que é contemporânea de outras então construídas, não terá tido o êxito que se lhe antevia. A conquista do Alentejo e Algarve iam ocorrer nas décadas seguintes e com elas acabaria o corso mouro, o que valorizava as vias mais da beira-mar, com passagem por Azurara, Vila do Conde, Póvoa, etc.
Capela de Nossa Senhora das Neves
A mais antiga menção duma ermida, que poderia ser a antepassada da Senhora das Neves, vem só de 1608; chamava-se então a Ermida do Vale das Flores. Muito poético este nome, que pode remontar aos tempos da Cividade de Bagunte. O tombo de Bagunte, de 1559, não fala da ermida, mas apenas do Vale das Flores.
Em 1758, o pároco de Bagunte afirmou sobre a Senhora das Neves que ficava em “deserto, onde só existe um caseiro da Quinta de Cavaleiros”; que a administração da ermida pertencia a essa casa e que “o seu actual administrador é Gregório Ferreira d’Eça, fidalgo da Casa de Sua Majestade; e no dia quinto de Agosto, em que se festeja a mesma Senhora, concorre um numeroso convento de gente das freguesias circunvizinhas, que me dizem são umas vinte, e cada uma faz a sua procissão de preces, e querem sejam votos antigos a que indispensavelmente há-de assistir uma pessoa de cada casa e, faltando, o juiz do subsino os condena”. D. Gregório Ferreira d’Eça foi pai da primeira Condessa de Cavaleiros, D. Maria José Ferreira de Eça e Bourbon.
Na citação das memórias paroquiais há que relevar duas afirmações: a de que a ermida ficava em deserto, mas onde existia um caseiro da Quinta de Cavaleiros, e de que “querem sejam votos antigos”. Isto é, existia lá um caseiro, naturalmente na sua casa, mas noutros tempos podem ter existido mais habitações, ao modo do que aconteceu com a vila de Gacim, no Outeiro Maior, de que, no séc. XVI, ainda existiam alguns pardieiros, e que depois deixou de ser lugar habitado. Não seria ali a Cornelhã medieval? O Cerquido fica perto…
Os “votos” eram antigos, isto é, a sua origem perdia-se na voragem dos tempos.
Em tempo em que o lugar não teria pinhal, a ermida seria bem visível para nascente e norte.
A talha do altar da capela remontará apenas a cerca de 1700.
Um jornal poveiro de 1934 traz esta lenda sobre a origem da devoção à Senhora das Neves e da respectiva ermida:
“Corre entre o povo a tradição de que a imagem da Senhora das Neves apareceu naquele lugar, sendo conduzida à igreja paroquial de Bagunte; mas desapareceu do altar para de novo ser encontrada no mesmo local.
Repetindo-se o acto três vezes e reconhecendo o povo crente ser vontade da Senhora ficar ali, erigiram-lhe uma ermida, dando à imagem a invocação de Nossa Senhora das Neves”.
A invocação da Senhora das Neves é conhecida em Roma desde tempos muito recuados.
O rio Ave
Um rio como o Ave era para a freguesia origem de dificuldades e fonte de riqueza. Por referência a ele, as Inquirições falam moinhos, de pontes, dum porto, do narseiro. Se nos lembrarmos que em Balasar se fala também de portos, vemos logo que se trataria apenas de qualquer pequeno barco que fizesse na travessia do rio para ajudar peões ou até cavaleiros. Pode-se sempre supor contudo que ao menos em certas ocasiões o Ave fosse navegável até à foz.
Bagunte e o Mosteiro da Junqueira
Apesar da dimensão da freguesia, o Mosteiro da Junqueira não teve em Bagunte doadores significativos, quando foi da sua fundação, ao contrário do que aconteceu no Outeiro Maior, em que a quase totalidade da freguesia lhe terá sido entregue.
Nas Inquirições de 1220, diz-se apenas que este mosteiro possuía um casal na freguesia. Mas houve depois doações de vários propietários.
Segundo um documento atribuído a Afonso Henriques, Bagunte integrar-se-ia no couto do Mosteiro da Junqueira, uma vez que este ia “... pela foz do Este e depois pelo rio Ave acima até ao rio da Povoação e daí até ao cimo do monte de Lobos, depois até ao porto da Fontainha e depois pelo rio Este até ao Ave”. Parece porém tratar-se duma falsificação.
Santagões
Durante mais de um século, o nome de Santagões apareceu ligado a um documento a que se atribuía o título de ser o escrito mais antigo da língua portuguesa. Trata-se dum Auto de Partilhas, de 1192, em que se herdava a abadessa de Vairão, Elvira Sanches, mais os seus irmãos. Em escrita actualizada, o documento reza assim:
«In Christi nomine. Amen. Hec est notitia (Em nome de Cristo. Ámen. Esta é a notícia) de partição e de divisão que fazemos entre nós das heranças e dos coutos e das honras e dos padroados das igrejas que foram do nosso pai e de nossa mãe, nesta maneira:
Que Rodrigo Sanches fique por sua partição na quinta do Couto de Vitorino e na quinta do padroado dessa igreja, em todas as heranças do couto e fora do couto;
que Vasco Sanches fique por sua partição na Honra de Oliveira e no padroado dessa igreja, em todas as heranças de Oliveira e no Casal de Carapeços que chamam Olival e noutro casal em Aguiar, que chamam quintã;
Mem Sanches fique por sua partição na honra de Carapeços e nas outras heranças e na Honra e herança de Arguife e na herança de Lavoradas e no padroado da igreja;
Elvira Sanches fique por sua partição nas heranças de Santagões e nas três quartas do padroado dessa igreja e na herança de Creixemil, nos das sextas como noutra herança.
Estas partições e divisões fazemos entre nós, que valham pelos secula seculorum. Amen (séculos dos séculos. Ámen).
Facta karta mensse Marcii era M.ª CC.ª XXX.ª (feita a escritura no mês de Março de 1192).» (Segue-se a lista das testemunhas).
Elvira Sanches era natural de Carapeços, Barcelos. A propriedade que aqui recebe seria uma herança para seu dote (era preciso um dote para se ir para freira, para garantir o sustento).
Este documento fez história, naturalmente. Mas veio-se a descobrir que afinal o original de 1192 era em latim e este documento apenas uma tradução de tempos posteriores.
O testamento da abadessa Elvira Sanches
[1]O Dr. Eugénio Andreia da Cunha e Freitas concluiu que «o mais antigo progenitor da família dos Cunhas que se pôde alcançar» fora um tal Soeiro Rouco que, em 1084, herdara os seus filhos Aldora e Mendo Soares na Vila de Gacim.
[2] Diplomática
[3] Há Cirquido ou Cerquido nos limites de Bagunte com Balasar.
[4] Deve-se dizer Sameiro ou Zameiro? A resposta é Sameiro. Não interessa que, nesses tempos recuados, se escrevesse Zameiro, porque também se escrevia Zividad, Gazim, Alza Perna, para dizer Cividade, Gacim, Alça-Perna.
Como demonstrou o Dr. Eugénio da Cunha e Freitas no número 63 do "Facho», do Comércio de Vila do Conde, o patronímico Sameiro era raro na Idade Média. Todavia, é conhecido o nome de um Pedro Sameiro que, em 1225, faz uma venda em Cuvilana ou Covilana, que pensamos que seja o lugar balasarense da Covilhã.
Provavelmente, D. Sameiro da Ponte d’Ave será o mesmo que deu o nome ao monte do Sameiro onde se ergue o famoso santuário mariano do mesmo nome.
[5] Será D. Goncinha a esposa de D. Sameiro ou o maravedi terá de ser dividido para a obra de duas pontes, sendo Goncinha a Lagoncinha da ponte de Lousado?
Este documento e o seguinte que mencionamos têm respectivamente os números 177 e 160 no primeiro volume de Sérgio Lira.
Imagens de cima para baixo:
Três perspectivas da Ponte d'Ave ou de D. Sameiro.
Portal da Igreja do Mosteiro de S. Simão da Junqueira.
Auto de Partilhas.
Imagens de cima para baixo:
Três perspectivas da Ponte d'Ave ou de D. Sameiro.
Portal da Igreja do Mosteiro de S. Simão da Junqueira.
Auto de Partilhas.
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